Lendo o Evangelho

É fundamental abrir o coração e expor o que nos aflige

Os discípulos de Emaús só superaram a dificuldade no fim da caminhada. Eles não foram “forçados” pela autoridade, nem persuadidos por argumentação sutil, nem seduzidos pela propaganda. Foram iluminados pela Palavra

Frei Aloísio, Ministro Provincial

Escrito por Frei Aloísio Oliveira

26 ABR 2020 - 00H00 (Atualizada em 05 MAI 2021 - 11H41)

Ao ler o episódio dos discípulos de Emaús em Lc 24,13-35, vê-se que, segundo o Evangelho de Lucas, a vocação cristã consiste em caminhar atrás de Jesus rumo a Jerusalém (cruz!). Mas, os dois discípulos de Emaús, desiludidos, dão as costas a Jerusalém e regressam cabisbaixos ao seu lugarejo de origem. Na verdade, caminham à deriva como quem perdeu o rumo e o próprio sentido de caminhar. Esperavam que aquela Páscoa fosse ímpar, pois veriam a tão sonhada libertação de Israel, mas tudo terminou tragicamente antes mesmo da celebração da festa. O sonho acabou! Não há mais esperança! Por isso, caminhavam, com o rosto sombrio (Lc 24,17), conversando sobre o episódio do Calvário, quando Jesus mesmo se aproximou, mas eles não perceberam que era Jesus porque “os olhos deles estavam impedidos de reconhecê-lo” (Lc 24,16).

Abrir o coração e expor o que nos aflige é fundamental. É a condição para recomeçar, para retomar o ponto de onde nos extraviamos. Pelo simples fato de se deixarem envolver no diálogo com o Ressuscitado, mesmo relutantes e entediados, os discípulos de Emaús liberaram um canal pelo qual puderam ser resgatados do fosso em que caíram.

Com efeito, reconhecer o Ressuscitado é um ato de fé. Não basta o ver empírico! Também não é iniciativa humana. Não basta a força de vontade! Como a cena o demonstra, é o próprio Ressuscitado quem se aproxima dos discípulos para começar o diálogo e lhes pergunta sobre o que estão conversando. Eles reagem indignados. Como era possível que aquele forasteiro desconhecesse o que havia acontecido em Jerusalém, naqueles dias? Jesus não faz caso da resposta ríspida e repreensiva. Simplesmente insiste na tentativa de provocar o diálogo com aqueles discípulos decepcionados e amargurados. Pergunta-lhes: “O que aconteceu?”. Revelando profunda decepção, eles falam, quase a contragosto, da angústia que estão experimentando: “Nós conhecemos um homem em quem pusemos nossas esperanças. Pensávamos que ele fosse redimir Israel, mas nossos líderes o mataram há três dias. Por isso, estamos desiludidos, perplexos... Não sabemos o que fazer!”.

Abrir o coração e expor o que nos aflige é fundamental. É a condição para recomeçar, para retomar o ponto de onde nos extraviamos. Pelo simples fato de se deixarem envolver no diálogo com o Ressuscitado, mesmo relutantes e entediados, os discípulos de Emaús liberaram um canal pelo qual puderam ser resgatados do fosso em que caíram. De fato, enredando-os no colóquio, o Ressuscitado lhes faz entender que é necessário interpretar de outro modo os acontecimentos que eles estão vivendo. E, para isso, é necessária a mediação da Palavra reveladora, porém, com a interpretação que dela faz o Crucificado-Ressuscitado. Pois, a interpretação de que dispunham estava gerando a decepção que eles experimentavam. Então, enquanto caminha com os discípulos pelas estradas de Emaús, Jesus os conduz por um novo “caminho” de aproximação das Sagradas Escrituras. Começando por Moisés e passando por todos os Profetas, explicou-lhes, minuciosamente, a trajetória do Crucificado (cf. Lc 24,27). Portanto, é pelo fim que se explica o começo. O Crucificado é a chave para se entender corretamente a revelação contida nas Escrituras, desde os primórdios.

Envolvidos no diálogo com o forasteiro, os discípulos de Emaús chegaram aonde deviam: à casa. Já em certo grau de transformação, intuem que, doravante, a casa deles, mais que um lugar, é a companhia daquele que, ao longo do percurso, os guiou na interpretação da Palavra. Por isso, não hesitam em dizer-lhe: “Fica conosco!” Esse convite é mais do que a delicadeza da hospitalidade oriental. Com efeito, a ceia na casa, com a bênção e fração do pão, precedida pela interpretação da Palavra, evoca imediatamente a celebração litúrgica da comunidade cristã, em que se ouve a Palavra e se comunga do Corpo e do Sangue do Senhor. É, portanto, no contexto eucarístico que os dois discípulos puderam reconhecer o Ressuscitado. E, ao reconhecerem o Senhor no próprio gesto de Sua morte, eles encontraram resposta para o motivo que os distanciara de Jerusalém.

Mas, ao reconhecerem o Senhor, Ele desapareceu. Que foi? Uma aparição? Delicadamente, o Evangelho não afirma que aqueles dois discípulos “viram”, mas “reconheceram” o Senhor (Lc 24,31). O Ressuscitado não é mais visível porque não é aquele terceiro personagem do caminho. Os discípulos o experimentam Vivo na própria vida. O Sacramento nos permite reconhecê-lo não simplesmente como alguém fora de nós, que “se pode ver” e “tocar” tatilmente, mas como alguém que habita em nós e nos aquece o coração, como o Vivente que se faz visível pela escuta da Palavra e se deixa tocar no Sacramento, de que a Igreja é fiel depositária.

Certamente também nós, de alguma forma, nos encontramos na situação dos discípulos de Emaús, procurando caminhos e tentando reencontrar o rumo e o sentido do nosso caminhar. Quem de nós não sente o desafio de uma verdadeira conversão pessoal ao Evangelho? Quem de nós não tem dificuldades pessoais e familiares, às vezes, bastante sérias? O que dizer do complexo cenário mundial com tantas ameaças à paz entre os povos? O que pensar das intrincadas problemáticas nacionais com tantos problemas político-econômicos? Como responder à necessidade de políticas públicas na saúde, na educação e noutras urgências sociais? Como não ficar horrorizados diante da violência, principalmente nos grandes centros urbanos, que diariamente ceifa vidas inocentes de adultos e crianças? O que dizer do descaso com a preservação ambiental sacrificada à ambição de lucro a qualquer preço?

Em face de tantos desafios, corremos o risco de cair no mesmo equívoco dos discípulos de Emaús, pretendendo avaliar e enfrentar as circunstâncias unicamente à luz de nossas compreensões e expectativas e, assim, sermos submergidos pela decepção e desânimo. Nesse sentido, essa passagem evangélica nos ilumina de modo ímpar. Os discípulos de Emaús superaram o beco sem saída em que se encontravam dando ouvido à Palavra Revelada interpretada pelo Cristo Crucificado-Ressuscitado. Ser cristão não é simplesmente ter iniciativas próprias, por mais eficientes que sejam; ser capaz de uma interpretação pessoal das Sagradas Escrituras, por mais plausível que seja. Ser cristão é seguir Jesus Cristo. Somente a trajetória de Jesus interpreta autenticamente as Sagradas Escrituras. Por isso, Evangelho é essencialmente Sua Pessoa. Somente Ele é capaz de nos abrir novos horizontes.

Sem dúvida, não podemos nos isentar de nossa responsabilidade, empenho e compromisso. Porém, diante de realidades e situações de difícil solução, vamos cuidar para não perder o horizonte da fé e orientar o nosso caminho não por nossas “possibilidades” ou “impossibilidades”, mas pelo Senhor mesmo que é parceiro e guia capaz de nos abrir caminhos e dar sentido ao nosso itinerário (cf. Lc 24,30-32).

Observemos que os discípulos de Emaús só superaram a dificuldade no fim da caminhada. Eles não foram “forçados” pela autoridade, nem persuadidos por argumentação sutil, nem seduzidos pela propaganda. Eles foram iluminados pela Palavra e começaram a perceber o que antes não percebiam. Foi o próprio percurso com o Crucificado-Ressuscitado que lhes reascendeu o ardor do coração e fez reaparecer o sentido do caminho. Certamente, foi um processo difícil e doloroso para eles. Mas valeu a pena!

Escrito por
Frei Aloísio, Ministro Provincial
Frei Aloísio Oliveira

É Ministro Provincial da Província São Francisco de Assis dos Frades Menores Conventuais e especialista em Sagrada Escritura.

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