Lendo o Evangelho

Agir igual ao bom samaritano

“Vai e faze tu o mesmo!”

Frei Aloísio, Ministro Provincial

Escrito por Frei Aloísio Oliveira

10 JUL 2022 - 00H00

Essa parábola surge como resposta à pergunta: “Quem é meu próximo?” dirigida a Jesus por um mestre do judaísmo. Homem erudito e habituado a definições teológicas sutis, ele pretendia obter um esclarecimento preciso do conceito de “próximo”. Mas, para seu desapontamento, ao invés de responder à pergunta com uma definição, Jesus contou-lhe a parábola do samaritano.

Pedagogicamente, Jesus envolve seu interlocutor na conclusão da história, perguntando-lhe: “Quem foi o próximo do homem ferido?”. O escriba lhe responde: “Aquele que usou de misericórdia com ele”. Jesus, então, arremata: “Vai e faze tu o mesmo!”.

Apresentar um samaritano como modelo da entranhada misericórdia de Deus era inaceitável para um judeu ortodoxo da época de Jesus. Samaritano significava ser heterodoxo, idólatra, traidor do legítimo judaísmo, pessoa desqualificada, indigna de ser apontada como referência positiva.

Imaginemos, portanto, a confusão na cabeça do escriba, quando ouve a parábola. Era o que ele menos esperava. Obviamente, não consegue aceitar isso sem resistências. Ao longo de toda a conversa, Jesus não procura vencê-lo à força de argumentos persuasivos. Com paciência, vai dialogando com ele, proporcionando-lhe a oportunidade de descobrir por si mesmo a resposta que buscava.

O escriba, que se move em meio a definições teológicas sutis, quer um esclarecimento acadêmico preciso do conceito de “próximo”. Nada disso distrai Jesus. Por meio da parábola, Ele procura transformar o conceito de “próximo” que o escriba tinha na cabeça, conduzindo-o a outra área na qual o especialista não é aquele que “sabe”, mas aquele que “conhece” por experiência.

O personagem do samaritano é o autorretrato de Jesus. Sem pretensões, Jesus imprimiu os traços de sua personalidade na história que contou. Contemplemos, pois, a cena, como se estivéssemos presentes nela. Primeiro de tudo, surpreende-nos a crueza da narração. É uma história com aspectos sombrios. Um homem é atacado por ladrões, que o deixam despido e quase morto. Duas pessoas representantes das classes mais prestigiadas da sociedade, um sacerdote e um levita, passam pelo local e, intencionalmente, se desviam da vítima e vão-se embora sem lhe prestar socorro.

Obviamente, a história nos faz relembrar o banditismo e a violência que grassam em nosso país, especialmente nos grandes centros urbanos, ceifando tantas vidas inocentes com assaltos à mão armada, balas perdidas, sequestros seguidos de morte e outras formas de agressão extrema.

Infelizmente, o número de vítimas continua a engrossar estatísticas sem que as autoridades tomem medidas eficazes para aviar soluções. A esse respeito, quanta incerteza paira sobre o futuro, quando os mais altos mandatários da nação propõem como uma das medidas de enfrentamento do problema da segurança pública o amplo acesso a armas por parte dos cidadãos em geral! Valha-nos Deus!

Voltando ao enredo da história, quando o desenrolar da trama nos fazia crer que o mal tem sempre a última palavra sobre as coisas e a situação do homem ferido era fatalmente irremediável, eis que surge a figura do samaritano. Com ele, abre-se um horizonte de possibilidades inesperadas. Este personagem, obviamente, representa o modo de Jesus ver a história humana, sua obstinada esperança. Sua confiança de que nela atua, ainda que revestida de fragilidade, a poderosa salvação de Deus.

É a fragilidade da cruz, única força válida que resiste em todas as situações (1Cor 1,23-25; 2Cor 12,7-10). Com efeito, em meio a tantos sinais de morte, o samaritano que entra em cena não parece possuir muitos recursos, não pertence a nenhum centro de poder que o apoie e lhe garanta prestígio ou influência. É um estrangeiro, viaja sozinho e conta apenas com seu alforje e sua cavalgadura.

Essa condição de pobreza e carência de poder, porém, não é obstáculo para ele se aproximar do homem caído. Quando os outros se esquivaram, sem crise de consciência por tê-lo deixado para trás, ele se sente afetado pelo ferido e responsável por seu desamparo. A urgência de estender a mão ao necessitado o faz adiar todos os seus compromissos e interromper seu itinerário. A inquietação pela vida ameaçada do outro predomina sobre seus próprios planos e traz o melhor de sua humanidade: um eu livre de si mesmo. Ele é um estrangeiro a quem nenhum vínculo de parentesco ou de solidariedade étnica obrigava a cuidar daquele desconhecido. Mas, parou e desceu da sua montaria para socorrê-lo. Interrompeu seu itinerário, adiou interesses para acudir a quem não estava em condições de cuidar de si mesmo. Ele, o marginalizado ignorante da Lei, revelou-se praticante da justiça da Boa-nova que supera a dos escribas e fariseus (Mt 5,20). Pois no mandamento: “Não matarás”, ele leu: “Tu farás tudo para que o outro viva”. Movido pela misericórdia, ele cumpriu a Lei com perfeição (Rm 13,8).

Se nesse gesto de pura doação gratuita estiver o segredo de nossa identidade mais profunda, então somos chamados a ser, num mundo dominado pelo ter e poder, um sinal tão pobre como a manjedoura e a cruz, uma presença “desempoderada” e inocente, que afirma como único poder válido o serviço e a doação em favor dos mais pequeninos (Mc 10,45). Nossa vocação cristã nos desafia a sermos uma minúscula pedrinha de tropeço num mundo obcecado pelo poder e pelo lucro, sonhadores com pés no chão, determinados a manter um relacionamento esperançoso – e não resignado –, com a realidade, capazes de descobrir possibilidades viáveis para a transformação e imaginar que “outro mundo” é possível.

Também em torno ao Samaritano existia, como agora, uma lógica dominante: “Se você parar para cuidar de um desconhecido meio morto, você vai expor-se a estragar seus planos, sua paz, seu tempo, seu óleo, seu vinho e seu dinheiro”. Mas contra ela, se coloca a lógica obstinada de Jesus: “Não meças, não calcules, deixa que o amor te desaproprie: será a doação no serviço aos outros que devolverá a tua identidade, exatamente quando tinhas a impressão de estar perdendo a tua vida”.

Voltemos nossa atenção, agora, ao homem meio morto. O fato de ele ocupar o centro do cenário nos leva a pensar que era natural para Jesus olhar as coisas a partir de baixo, com os olhos daqueles que vivem ou sobrevivem nas piores situações. Ele que nasceu numa gruta nas cercanias de Belém e morrerá fora das muralhas de Jerusalém, “se move” e planta a sua tenda, lá onde ninguém esperaria: entre os despossuídos, os derrotados e excluídos, exatamente lá onde parecia que toda esperança tinha sido extinta. Vamos encontrá-lo sempre do lado de fora, entre aqueles a quem o mundo jogou às traças.

“Cuidou dele”, diz o texto. “Cuida dele”, dirá depois o samaritano ao estalajadeiro. “Cuidar” é uma atitude maternal, paciente, carinhosa, que confronta nossa pressa e nosso afã de obter resultados imediatos. Esta dimensão humana do “cuidar” pode irradiar calor nas nossas relações pessoais na família, na comunidade e na sociedade em geral, romper nossas resistências, fazer amolecer a dureza de coração que, tantas vezes, nos impede de viver com mais cordialidade e atitudes de benquerença. Nesse sentido, a imagem do homem meio morto, caído à beira do caminho, deveria nos intrigar muito: será que também nós, pessoalmente e como comunidade, não estamos meio mortos em relação à nossa vida cristã? Como está o nível do nosso testemunho diário? Será que nosso modo de viver e atuar na família, no ambiente de trabalho, na comunidade... corresponde à fé que professamos?

Como cristãos católicos – e, quem sabe, ligados a grupos e movimentos eclesiais – cabe nos perguntar, ainda: como vão as iniciativas de evangelização em nossas paróquias: catequese, pastorais, movimentos e os tantos grupos eclesiais? Será que estão suficientemente conectadas ao Evangelho de onde jorra a vida em abundância prometida pelo Senhor? Será que não estamos de tal forma necrosados que já não conseguimos comunicar às novas gerações a “Alegria do Evangelho” e despertar nelas a paixão pela causa do Reino? Com tristeza, vemos nossas igrejas cada vez mais vazias, com acentuada ausência de fieis, sobretudo de jovens. É claro que nunca desejaríamos estar na encruzilhada em que nos encontramos hoje. Gostaríamos muito mais de continuarmos numerosos, com nossas igrejas cheias e gozar de grande prestígio social. Mas, a verdade é que estamos sendo conduzidos a uma situação exatamente contrária. E temos de ter cuidado para que a lida com essa realidade de “encolhimento” não se torne uma fonte de depressão espiritual que nos bloqueia e nos impede de viver felizes e ser criativos. Muitas vezes, anda “meio morta” a nossa esperança em relação ao futuro. Parece que nos esquecemos de que o Senhor a quem seguimos é que conduz a Igreja e o mundo. Mas, se já não ousamos mais lançar nossa confiança n’Ele, então, caímos numa heresia muito perigosa que anula toda possibilidade de esperança. E quando a esperança entra em crise, o amor e a fé começam a agonizar.

 Temos de aprender a olhar nossa condição de “meio mortos” com o alívio de saber que, Jesus, o Bom Samaritano por excelência, vai se colocar a favor da metade viva que nos resta para amparar nossa vida ameaçada, derramando sobre nossas feridas o óleo da Sua consolação e o vinho da Sua força. Inclusive, temos de ousar a pensar: e se esse estar “meio mortos” em nós mesmos e todas essas situações de fragilidade, que tanto nos repugnam, forem os “mensageiros” encarregados de anunciar uma novidade que chega a nossas vidas? Não estará diante de nós o kairós (tempo oportuno) para descobrirmos em nossa fragilidade “um novo caminho” no qual a força se manifesta na fraqueza e a vida na morte? (2Cor 12,9). Não será, agora, o momento de confiarmos plenamente que Deus está realizando algo novo com a nossa fragilização, e até mesmo com as nossas perdas, e aceitarmos ser na Igreja “portadores das marcas de Jesus”, uma realidade sempre frágil e nunca acabada?

Escrito por
Frei Aloísio, Ministro Provincial
Frei Aloísio Oliveira

É Ministro Provincial da Província São Francisco de Assis dos Frades Menores Conventuais e especialista em Sagrada Escritura.

Seja o primeiro a comentar

Os comentários e avaliações são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião do site.

0

Boleto

Reportar erro!

Comunique-nos sobre qualquer erro de digitação, língua portuguesa, ou de uma informação equivocada que você possa ter encontrado nesta página:

Por Espiritualidade, em Lendo o Evangelho

Obs.: Link e título da página são enviados automaticamente.