Na Bíblia, ser tentado significa ser submetido a um período de teste em que uma pessoa ao passar por determinadas situações, torna-se manifesto o conteúdo de seu coração, isto é, seus valores e atitudes mais arraigadas. Assim diz o Deuteronômio a respeito da experiência vivida por Israel no deserto: “Recorda-te de todo o caminho que o Senhor teu Deus te fez percorrer, durante quarenta anos, no deserto para humilhar-te e ‘tentar-te’ para conhecer o que tinhas no coração” (8,2).
Dessa forma, mais que lugar geográfico, o deserto passou a significar, para Israel, um conteúdo antropológico-espiritual de notável relevância, simbolizando, por excelência, as situações de provação que abrem possibilidades de um “mundo novo”: é espaço a atravessar e tempo a cumprir para sair da terra da escravidão e chegar à Terra Prometida.
Mas, não se pode iludir. Composto de uma paisagem monótona e sem vida, de um tempo de aridez e amargura, o deserto repercute na vida do fiel como prova, ou seja, “tentação”. Trata-se de uma experiência difícil de integrar como parte necessária do próprio caminho de crescimento e libertação.
É no deserto que Israel tenta Deus: Valia a pena o êxodo? Não era melhor permanecer no Egito ao redor das panelas de carne e cebola? (cf. Ex 16,3; Nm 11,5). Torna-se, assim, manifesto seu coração rebelde, incapaz de ouvir a voz do Senhor (cf. Sl 95 [94],7-10). Por isso, Jesus também viverá o deserto como uma preparação necessária para o seu ministério: o confrontar-se face a face com o poder e o fascínio da ilusão satânica, revelará em Jesus um coração sintonizado com Deus, que só dá ouvido à Sua Palavra (cf. Mt 4,1-11). Confirmado pelo embate no deserto, Jesus pode anunciar publicamente a chegada do Reino de Deus (cf. Mc 1,14-15).
Marcos, diferentemente de Mateus e Lucas, não especifica as tentações. Ele as deixa aparecer no decorrer do Evangelho como perigo constante de antecipar a glória do Filho evitando a cruz do servo. Esta tentação geral se exprime em tentações individualizadas típicas de cada ser humano.
A primeira delas é o “protagonismo” que confunde o Reino de Deus com o sucesso do próprio “eu”. Aparece para Jesus logo no primeiro dia de seu ministério quando lhe dizem: “Todos te procuram” (1,35). Por o próprio “eu” como fim absoluto, no lugar de Deus, é o egoísmo que deu origem a todo mal (cf. Gn 3).
A segunda é a busca de “poder” mundano para realizar o Reino de Deus. O fim é justo, porém o meio é impróprio. O Reino não se realiza com o poder, mas com a impotência de quem dá a própria vida a serviço dos irmãos. Esta tentação aparece logo depois da multiplicação dos pães quando obriga os discípulos a irem embora e despede as multidões (Mc 6,45). O evangelho de João afirma, claramente, que queriam fazê-lo rei (Jo 6,15).
A terceira tentação é a busca do “poder religioso”. Consiste no querer sujeitar Deus à própria vontade, em vez de sujeitar-se à dele. Jesus passa por essa tentação no horto (Mc 14,32-36). É a luta definitiva.
Pedro encarna todas essas tentações quando recusa a Palavra da cruz (cf. Mc 8,31-33). Jesus o chama Satanás, porque fechando em uma perspectiva exclusivamente humana, seu modo de avaliar torna-se oposto ao de Deus.
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