Tinha um sapateiro que era sempre de bom humor. Era tão feliz que cantava de manhã até de noite. Sempre tinha crianças na janela da sua casa para escutá-lo e cantar junto. Na casa de lado morava um homem muito rico. Passava as noites contando o seu dinheiro e depois ia dormir de madrugada. Mas não conseguia porque o sapateiro cantava. Certo dia entendeu como podia fazê-lo parar. Convidou o sapateiro para almoçar na sua casa e lhe deu de presente uma pequena bolsa cheia de moedas de ouro. O pobre nunca tinha visto nada semelhante. Começou a contar as moedas. Depois as contou e as contou de novo e as crianças na janela aguardando as suas canções. A partir daquele momento, o sapateiro ficou tão entretido com o dinheiro que esqueceu o resto. Queria um lugar seguro para esconder as moedas. Primeiro achou que o galinheiro era o lugar certo, depois as colocou no meio das cinzas da chaminé, por fim cavou um buraco no quintal. Não trabalhava e não cantava mais. As crianças pararam de visitá-lo. Ficou tão triste e infeliz que resolveu recuperar as moedas e devolvê-las ao vizinho. Disse-lhe: – Por favor, pegue de volta o seu dinheiro. As preocupações me fizeram adoecer e perdi os meus amigos. Prefiro ser pobre e sapateiro como antes. Voltou a ser feliz, a trabalhar e a cantar. E as crianças voltaram.
Depois do Evangelho das tentações que encontramos no Primeiro Domingo de Quaresma, no Segundo, nos é proposta a página da Transfiguração, este ano na versão de Lucas. Não é mera repetição. Por ter sido colocada entre dois anúncios da paixão, morte e ressurreição de Jesus, ela se torna uma introdução ao mistério-escândalo da cruz. Mistério não é um enigma insolúvel, é algo tão grande que supera o nosso limitado entendimento. Deus é incomparavelmente diferente de nós. Por isso, o “escândalo” vai junto, porque acreditar num Deus que ganha quando perde é sempre muito difícil. A questão é que o nosso Deus, Pai de Jesus Cristo, é o maior na força do amor, não no poder que esmaga os inimigos. Porque Deus não tem inimigos, só tem filhos, alguns dos quais, ou muitos, ainda não o conhecem bem e não o conseguem entender. Além da cruz, o difícil de entender do nosso Deus é o ter-se tornado um de nós.
São Paulo nos ensina que ele se “esvaziou” do tudo que era, e que é, para se tornar o nada que somos nós. A luminosidade da Transfiguração é indescritível, mas mesmo assim ainda é pouca e nem conseguimos imaginar a grandeza de Deus. No entanto, em Jesus, o Filho amado, Ele se fez nada, assumiu a carne humana até a morte e "morte de cruz”. Nós, humanos, lamentamos quando perdemos alguma coisa, choramos e nos desesperamos se ficarmos mais pobres. Deus Pai deu Seu Filho e o Filho deu tudo, entregou a Sua própria vida. Isto funciona somente com a lógica do amor divino, nunca com os nossos critérios interesseiros e gananciosos. Somente abrindo o nosso coração àquilo que Jesus fez e ensinou, aos poucos, conseguimos, ainda que de longe, nos deixar surpreender e envolver por este amor tão grande. Nada de palavras inúteis, explicações confusas. Melhor ficar em silêncio, pensativos, como os três apóstolos descendo do monte.
O tempo da Quaresma é tempo de conversão, escuta da Palavra do Senhor e oração. No meio de tantas opiniões, conversas, slogans e gritos, nos faz bem voltar ao silêncio da nossa consciência, para nós mesmos, cada um pessoalmente, tomar conta do rumo da nossa própria vida. A quem queremos seguir enfim? Já deveríamos ter entendido que caminhos fáceis e cômodos são atraentes, mas não levam a lugar nenhum, ou, talvez à desigualdade e à injustiça. Muito mais difíceis são os caminhos da generosidade, da partilha e da fraternidade.
Podemos ficar entretidos contando o nosso dinheiro, defendendo as nossas ideias, os bens e os privilégios ou, refletir, no silêncio do coração, para poder seguir Jesus e cantar de novo o canto da liberdade e do amor. Como o sapateiro feliz. Simples e amigos das crianças porque delas é o Reino de Deus.
Por Dom Pedro José Conti, bispo de Macapá, no Amapá
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