Padre Antônio Bogaz e professor João Hansen
autores de “Homilia, a teologia do Papa Francisco” (Paulinas, 2020)
Quando o mundo soube que o Papa Francisco preparava uma encíclica sobre o tema da ecologia no mundo contemporâneo, todos esperavam mais um documento com os temas fundamentais e frequentes deste argumento tão moderno, como a pureza do ar, a proteção dos rios e das florestas, a devastação dos ecossistemas, entre outros.
No entanto, a dimensão espiritual da ecologia, propulsionada pelo olhar de São Francisco, que é sua fascinação e reverência diante da Obra da Criação, e as realidades relacionadas com a natureza, como a exploração econômica, a proteção dos povos nativos e a realidade das misérias urbanas, como os lixões e os esgotos a céu aberto, mostraram que a encíclica tinha a marca do seu autor: um olhar profético e social, muito mais que um olhar romântico e burguês.
Ao assumir o próprio título pontifício como Francisco, o Papa Bergoglio manifesta seu desejo de assumir as características carismáticas do Santo de Assis, como a simplicidade, a pobreza, a fraternidade universal e os cuidados com a natureza. Pensando no “cuidado com a casa comum”, eleva a beleza de todo universo e aponta alguns abusos como o consumismo, a irresponsabilidade do progresso e o uso inadequado e injusto dos bens da natureza.
Todos os poderes do universo devem se unir para combater a degradação ambiental e as alterações climáticas que são malefícios galopantes em nossos tempos. A publicação deste documento pontifício, lançado em 2015, é uma resposta aos apelos das comunidades religiosas, ambientais e científicas diante das preocupações com as mudanças climáticas, a crise energética e a deterioração do meio ambiente. Como em grande parte do mundo, os poderes políticos e econômicos não estão interessados no bem comum, mas apenas nos lucros e privilégios advindos do progresso. É preciso que os cidadãos do mundo inteiro se manifestem exigindo mudança de posturas e maiores cuidados com a “nossa casa comum”. Mesmo se tratando de uma encíclica papal, seus argumentos se norteiam pelas pesquisas científicas. Os “dois franciscos” revelam a fraternidade universal, em unidade com todos os bens da criação. Todos somos irmãos e nos protegemos mutuamente.
Partindo da inspiração do Cântico das Criaturas do “homem mais importante do século XX”, Francisco de Assis, o poema apresenta a natureza como expressão do Criador que criou todos os bens para a fraternidade e a convivência harmônica.
Seu propósito é a superação da fraternidade entre o ser humano e toda a criação. Em palavras metafóricas, a harmonia entre os cinco dias da criação, conforme Gênesis (Gn 1-2) e o sexto dia, com a criação do ser humano. E, mais que esta relação, a integração entre a criação (seis dias) e o Criador (o sétimo dia).
Este magnífico poema atribuído a São Francisco coloca toda criação sob o olhar amoroso do Criador, destacando a harmonia entre todos, sem dominação ou supremacia, apesar das diferenças de “status creacional”. Visa superar a visão antropocentrista equivocada de dominação e manipulação do ser humano sobre todos os demais seres criados. Busca ainda vencer o distanciamento e o desprezo pelos bens terrenos, muito comum nas religiões.
Podemos falar da fraternidade humana, mas também da fraternidade cósmica e natural. Todos vivemos em uma casa comum e devemos cuidar destes espaços conviviais e viver harmonicamente com todos os seres. Não se pode simplesmente detonar a obra da criação, para salvaguardar o bem-estar da humanidade, pois isso provocaria uma destruição generalizada do planeta.
Profeticamente, o Papa Francisco “condena a incessante exploração e destruição do ambiente, responsabilizando a apatia, a procura de lucro de forma irresponsável, a crença excessiva na tecnologia e a falta de visão política”.
Esta exploração destrutiva advém dos crimes sociais e políticos, como a usurpação dos bens comuns por grupos corporativistas e a má distribuição de riquezas. Com o rápido desenvolvimento das técnicas e ciências, descuidou-se dos ecossistemas, os quais são destruídos de forma rápida e descontrolada.
Algumas implicações são destacadas como a necessidade do planejamento urbano, mais humano e menos explorador, resgate das atividades agrícolas e a biodiversidade. O mundo precisa recuperar seus valores éticos e não se servir das desculpas ecológicas para justificar mazelas humanas, como o aborto, a redução da natalidade e a justificativa da miséria. São bem outras as causas destas tragédias humanas. A pergunta fundamental nos deixa em profunda reflexão: “que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão crescendo”? (Laudato si’, 60).
Estamos diante das indagações mais profundas da existência humana e natural: nossa presença no universo, nossa habitação no planeta e o sentido de nossa vida, temporal e espiritual.
Seguindo o ritmo das reflexões tradicionais da Igreja, o Papa parte de um olhar sobre a realidade, uma análise objetiva e detalhada da “casa comum”, termo que se firmou como compreensão do planeta como um todo creacional.
No documento, o Papa aponta alguns fatores preponderantes que exigem novas posturas pelo ser humano, como as mudanças climáticas (26), a partilha da água (30), a preservação da biodiversidade (33), a dívida ecológica (51), onde os hemisférios estão em contraposição radical, além do desinteresse dos poderosos para resolver os problemas mais cruciais da tragédia ecológica do planeta (53).
Seguindo a mística da criação, a partir da Bíblia, sobretudo a narrativa do livro do Gênesis, Francisco mostra que toda criação é um bem comum, ofertado por Deus para todos os povos e não para a usurpação e manipulação de grupos econômicos e de governantes inescrupulosos. Somos corresponsáveis para “cultivar e guardar” (Gn 2,15).
É urgente a consciência da comunhão universal (89), pelo respeito sagrado, amoroso e humilde. O grande mal desta crise ecológica cristã é o excesso de antropocentrismo e o egoísmo de mercado, que promovem a “lógica do descarte”, onde tudo pode ser usado, manipulado e rejeitado, como se os bens da natureza fossem bens sem valor próprio.
O descarte dos bens da natureza provocam em segunda instância o descarte dos seres humanos, sobretudo crianças, idosos e pobres. Esta crítica radical do Papa provoca, com certeza, raiva naqueles que vivem destas explorações naturais e humanas, para se enriquecer ilicitamente.
O Papa Francisco compreende que a Igreja não define respostas científicas, pois não é este seu propósito, mas apresenta princípios e iluminações cristãs, para que não se descuidem os bens comuns em relação aos povos nativos, aos pobres e às vítimas das explorações da natureza, como caçadores de minérios, madeireiras e escravizadores humanos.
Que o debate seja honesto e transparente e necessidades particulares e ideologias políticas não lesem o bem comum. Falamos de uma ecologia integral, pautada em valores humanos e cristãos, que se inspiram nos testemunhos vitais de São Francisco de Assis, de São Bento, de Tereza de Lisieux e de Charles de Foucauld, seres humanos que viveram de forma tão elevada que harmonizaram a vida interior com as questões mais urgentes da vida social.
Fonte: O Mílite
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