Jesus sai definitivamente da Galileia rumo a Jerusalém e, pelo caminho, ensina o povo, como de costume. O primeiro ensinamento diz respeito ao matrimônio e surge de um debate com os fariseus que querem testar Jesus perguntando-Lhe se era lícito ou não ao marido divorciar-se de sua mulher.
Posto que no judaísmo oficial da época o divórcio era previsto em lei, o interesse era desafiar Jesus a contradizer a lei (cf. Mc 12,15). Nisto consiste o aspecto tentador da pergunta. À semelhança do episódio do tributo a César, Jesus responde com uma contrapergunta: “O que vos ordenou Moisés?” Replicaram-Lhe que Moisés permitiu despedir a esposa concedendo-lhe um atestado de divórcio (cf. Mc 10,3-4).
A resposta dos fariseus refere-se à passagem de Dt 24,1-4 que constituía a base para a regulamentação do divórcio, no judaísmo oficial da época. Visto que o matrimonio era regulamentado pelas normas do direito, segundo o qual a mulher era considerada parte das posses do marido (cf. Ex 20,17), a iniciativa e o processo em caso de divórcio estavam inteiramente nas mãos dele. A preponderância masculina era evidente inclusive na fórmula usual do matrimônio que falava só do marido e dizia: “Seja você separada para mim”.
Despedir a mulher compreendia a totalidade do processo de divórcio e o documento que lhe era concedido visava deixá-la em liberdade e preservá-la da acusação de adultério, caso contraísse novo matrimônio. Embora no judaísmo do primeiro século da Era Cristã, não houvesse matrimônio que não pudesse ser desfeito legalmente pelo marido, existiam interpretações divergentes sobre o motivo de divórcio indicado em Dt 24,1: “porque o marido encontra algo vergonhoso na esposa”. A escola do famoso Rabino Shammai entendia o conceito de “algo vergonhoso” em sentido muito restrito e o relacionava a pecados de fornicação. A escola de outro Rabino renomado, chamado Hillel, entendia o referido conceito em sentido amplo e sob o qual incluía coisas tão insignificantes como deixar a comida queimar na panela. Com efeito, as funções culinárias formavam parte das atividades e obrigações mais importantes da mulher.
De qualquer forma, o texto da Escritura citado pelos fariseus para pôr Jesus à prova, situa-se no campo legislativo e visava a regulamentar a condição da mulher abandonada pelo marido. A resposta do Mestre, porém, transfere a questão do plano normativo-jurídico ao religioso. A carta de repúdio ou ata de divórcio é um paliativo, que busca remediar uma situação viciada na origem. Com efeito, é o coração “endurecido”, que compromete o projeto originário de Deus. Às refinadas sutilezas casuísticas dos piedosos legistas, que tentam fazer coincidir a vontade de Deus com seus desejos e interesses, Jesus opõe uma nova percepção. Não há lei que possa fazer brotar o amor ou ressuscitá-lo onde estiver morto. Somente a fonte originária do amor, o gesto criador de Deus, oferece ao homem e à mulher a possibilidade de se realizar no recíproco empenho de amor. O projeto originário de Deus, como está expresso em Gn 1,27; 2,24 – isto é, a união do homem e da mulher em uma só “carne” – é comprometida pela insensibilidade humana, que seca a fonte do amor no próprio centro da personalidade, o coração.
A novidade de Jesus não consiste em propor uma legislação mais rigorosa do compromisso de amor entre homem e mulher, ou uma visão moral mais elevada que a visão judaica. Sob este aspecto, Ele nada fez senão se referir à tradição bíblica registrada nos dois textos do Genesis acima mencionados, tradição que estava presente e viva em alguns ambientes e círculos religiosos. A palavra de Jesus anuncia uma nova possibilidade, é um alegre anúncio: aqui e agora, no seguimento de Jesus, é possível realizar o projeto originário de Deus, porque a quem adere profundamente ao evangelho é tirada e eliminada a dureza de coração. Agora existe para o homem e a mulher uma real possibilidade de crescimento no amor.
O segundo ensinamento ocorre no contexto de uma repreensão de Jesus a Seus discípulos por se irritarem com as crianças trazidas para que Ele as abençoasse tocando-as. A atitude dos discípulos parece estranha. De qualquer maneira, o episódio denuncia um afã de domínio e pouca amabilidade. Não era fácil ser amável com as crianças. Elas ocupavam um lugar inferior na sociedade. Conforme uma opinião amplamente difundida naquela época, a criança era desvalorizada porque desconhecia a Torá (Lei) e, portanto, não tinha mérito algum diante de Deus. Assim, ao prometer o Reino de Deus às crianças, Jesus coloca-se contra um pensamento teológico amplamente difuso.
O decisivo, porém, já não é a relação imediata com as crianças. Mas antes, a cena das crianças torna-se transparente para os discípulos. “Fazer-se criança”, aqui, significa tornar-se pequeno diante de Deus e diante dos homens, deixar de lado o afã de mandar sobre os outros, estar disposto a renunciar aos privilégios pessoais.
O reino de Deus, isto é, a sua justiça, paz e salvação, agora presentes na ação e na pessoa de Jesus, são um dom que pertencem àqueles que são privados de prestígio e direitos, de defesas e pretensões. São os pobres aos quais pertence o Reino de Deus (cf. Lc 6,20b e Mt 5,3-10). O futuro definitivo de Deus pertence à categoria dos excluídos, dos párias da sociedade, como os doentes, os pecadores, as mulheres, as crianças. Quem não acolhe o reino de Deus como uma criança não entrará nele. Visto que os pequeninos e os pobres não têm segurança para defender, nem privilégios ou papéis para reclamar, podem ficar totalmente abertos ao dom de Deus, enquanto são também plenamente disponíveis à mudança radical e à confiança que o Reino requer. De fato, o anúncio do reino de Deus feito por Jesus faz apelo a estas duas condições: converter-se e crer (cf. 1,15).
Para Marcos, esta passagem tem uma importância concreta: pretende pôr às claras como o discípulo de Jesus deve entender-se a si mesmo. Tem de estar livre de pretensões egoístas; tem de ser como criança diante de Deus. Desta maneira poderá amar a seus semelhantes. Simultaneamente, o evangelista consegue fazer uma apresentação intuitiva de como entende o Reino de Deus. Embora seja futuro, atua já poderosamente no presente. E isto é possível porque Jesus não se limita a proclamar o Reino, mas o traz próximo ao ser humano. Nem todos podem entender isso, mas unicamente aqueles a quem é dado entender (Mc 4,11). Esses serão como crianças.
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