Reportagem

Vítimas ocultas da pandemia

Redução de renda, mudança na rotina e demandas escolares tem aumentado casos de doenças mentais em crianças e adolescentes

Escrito por MI

05 JUN 2021 - 00H00

Por Ana Cristina Ribeiro, jornalista e licenciada em letras
Núria Coelho, radialista e jornalista

Estamos a mais de um ano do início da pandemia do novo coronavirus, algo que mudou muito a rotina das famílias do Brasil e do mundo. As medidas de prevenção da doença, como distanciamento social, isolamento, o uso de máscaras e álcool em gel, estão fixadas na mente da população.

Assim como os adultos, as crianças também tiveram que se adaptar à nova realidade. De repente as aulas não eram mais ministradas na sala de aula e, sim, na sala de casa, que também virou o espaço de trabalho home office dos pais. As atividades extras foram canceladas ou adaptadas para o virtual, os encontros com os amigos passaram a ser online, e a convivência com as pessoas da mesma casa se tornou mais intensa.

Uma pesquisa da Unicef (Agência da Organização das Nações Unidas para defesa de crianças e adolescentes) aponta que esses desafios afetaram a saúde mental de crianças e adolescentes: 27% dos entrevistados relataram que adolescentes apresentaram insônia ou excesso de sono; Outros 29% relataram tiveram alteração no apetite; 28% tiveram diminuição do interesse em atividades rotineiras; e 54% das famílias relataram que algum adolescente de casa apresentou algum sintoma relacionado à doença mental.

A redução de renda, desemprego e insegurança da economia do país também foram fatores de relevância que comprometeram a estabilidade emocional da família. A capacidade de resiliência, de adaptação, de lidar com a situação estão se esgotando. E as crianças e os adolescentes já estão exaustas com a situação. Para Fabrícia Signorelli, psiquiatra com ênfase em psiquiatria da infância e adolescência e mestre em distúrbios do desenvolvimento, explica que após um ano de aula online o aproveitamento pedagógico tem caído muito. “Tem criança que iniciou 2021 sem ganho pedagógico nenhum e isso, automaticamente, impacta na questão emocional. As crianças ficam insegura, estão esgotadas e isso tem gerado mudança de comportamento e baixa a autoestima nelas. A adolescência é uma fase de extrema importância e toda a expectativa que se tem do convívio social, pré-vestibular, Enem gera ansiedade, depressão e frustração para o adolescente”.

Nas crianças que, no início da pandemia eram bebês e hoje têm entre um ano e meio e dois anos, o prejuízo tem sido no atraso do desenvolvimento como a psiquiatra Fabrícia destaca: “Crianças pequenas estão privadas de frequentar creches de ensino infantil, lugar onde há estimulo para o desenvolvimento. Muitas apresentam atraso na linguagem, não estão aprendendo a brincar, porque não estão interagindo com outras crianças da mesma faixa etária”.

Os melhores amigos estão em casa


Taís Priscila Cardoso da Silva e família

Taís Priscila Cardoso da Silva é professora de educação infantil da rede municipal e mãe do Pedro de 14 anos, da Beatriz de 13 e da Luísa de 7 anos. Para ela o maior impacto desse tempo foi ter que desacelerar: “Tínhamos uma vida ativa. As agendas das crianças além da escola, incluíam inglês, natação, futebol, passeios semanais e, de repente, ficamos sem tudo isso e presos em casa. O mais difícil foi aprender a gostar do ócio, gostar de fazer nada de vez em quando”.

O contexto que acompanha a pandemia tem gerado estresse e ansiedade em todos. É comum identificar esses transtornos nos adultos, mas nas crianças e adolescente isso pode passar despercebido. Em outubro do ano passado filha mais nova de Taís, Luísa, demonstrou que algo estava errado no simples gesto de respirar. A menina passou a puxar a respiração de forma profunda e isso preocupou a mãe que imediatamente foi buscar ajuda com a pediatra: “A observei durante uma semana, me apavorei quando vi que ela não estava respirando normal, pensei em milhares de coisas, que seria até algum problema cardíaco. Quem ficava ao lado dela também sentia falta de ar só de vê-la puxando o ar daquele jeito. Levamos ela na pediatra e recebemos o prognostico de ansiedade. Perdi meu chão, achei que estava tudo bem com eles, me senti culpada”. Ela seguiu as orientações da pediatra e um mês depois a Luísa já estava bem melhor, seguindo a rotina do novo cenário.


Filha de Taís Priscila Cardoso da Silva

No início da pandemia, a família da Taís entrou numa troca acelerada para compensar a mudança radical que o momento impôs. Faziam atividades em família como cozinhar, dia de beleza com as meninas e algumas atividades físicas em casa, mas com o trabalho e os estudos tudo se acumulou e não conseguiram seguir com a nova rotina. A saudade dos avós e tios era grande e a alternativa da ligação de vídeo amenizava um pouco, mas ainda era muito difícil lidar com a distância. “Quando a saudade apertava forte passávamos na frente da casa dos avós de carro, usando máscara, tomando todo o cuidado necessário para dar um tchau de longe ou para uma breve conversa que aquecia os corações”, reforça Taís.

É fato que a pandemia pegou todo mundo de surpresa e é assustador os impactos que isso trouxe para todos. Segundo a psiquiatra Fabrícia lidar com esse turbilhão de sentimentos sem apoio pode causar ainda mais estresse, entretanto há técnicas que podem contribuir para que esse cenário fique mais leve. “A Terapia Cognitiva Comportamental é uma delas e tem muita eficácia. Técnicas de meditação também têm ajudado a diminuir os níveis de estresse. A gente sabe que os ganhos da atividade física também são relevantes, porém, é preciso respeitar as normas de distanciamento e cuidados. Outro ponto importante é a qualidade do sono e tentar manter a rotina de acordo com a realidade de cada um”.

A família da Taís segue a rotina de isolamento e distanciamento social. As aulas online também continuam e os desafios estão presentes todos os dias: “A Luísa está na idade de expandir e explorar atividades motoras que nem sempre podemos garantir. Vive fazendo peripécias que nos deixam aflitos. O Pedro e a Beatriz estão adolescentes e sabemos o quanto é importante se relacionar e conhecer novos amigos nessa fase. Fico preocupada, mas com os pés no chão de que com saúde poderão compensar tudo num futuro próximo”.

Estar confinado é um desafio, mas há também momentos únicos que ficarão para sempre. Sobre isso Taís destaca: “Sabe aquela frase que ouvimos muito dos nossos pais que diz que os melhores amigos estão em nossa casa, que são os pais e os irmãos? Tivemos que aprender isso na marra. Hoje a música preferida deles, por exemplo, é compartilhada conosco e temos a chance de partilhar as nossas favoritas com eles, fazer trocas que se fosse em outros tempos seríamos sucumbidos pelos olhares interessantes que os adolescentes têm pelos amigos e que muitas vezes faz esquecer de seus pais”.

Se reconectar com o outro


Érica Silva Oliveira e família


Um dos pontos mais altos dessa pandemia é a convivência familiar que ficou ainda mais intensa. Claro que o que mais queremos é poder reunir toda a família naquele almoço de domingo para bater aquele papo gostoso que tanto nos faz bem, mas isso também passou a ser restrito nesse tempo. Contudo, o relacionamento com quem moramos se tornou mais próximo e acentuado. Na intimidade dos lares houve muitas risadas e também lágrimas, mas juntos.


Clara, filha de Érica Silva Oliveira

Na família da professora de matemática Erica Silva Oliveira não foi diferente. A pandemia mudou a rotina da casa e isso trouxe muitos desafios para todos. Mãe do Vitor de 13 anos e da Clara de 5 anos, a professora encontrou bastante dificuldade no início. “Só pela idade dá para ver que eles têm necessidades diferentes. Demanda com escola, demanda de higiene e também de entretenimento foram bem diferentes. Ao mesmo tempo que foi maravilhoso poder ficar com os meus filhos o tempo todo. O meu trabalho foi um fator de muito desgaste, pois apesar de estar com eles de corpo presente, muitas vezes não dava a atenção que eles precisavam”, relata Erica.

Antes da pandemia a família de Erica tinha uma rotina acelerada também. Ela dava aulas de manhã e no período da tarde deixava os filhos nas atividades extras como futebol e natação. Parar tudo foi uma mudança grande para eles. “De repente virou tudo uma coisa só. Tinha demanda profissional, doméstica e familiar para dar conta. Não tinha horário estabelecido para cada coisa. Foi muito difícil no começo”, conta Erica.


Vinicius, filho de Érica Silva Oliveira

Aos poucos eles foram se organizando, mas os prejuízos emocionais já estavam ali: “O Vinicius apresentou alguns sintomas de ansiedade. Passou a roer unhas, não abria a câmera nas aulas, teve insônias e isso gerava irritabilidade nele e em mim porque eu também estive privada de sono por um tempo. Ele desenvolveu uma alergia no pé que demorou muito para ser tratada. Tivemos que buscar ajuda médica e acredito que foi também uma questão emocional. Já minha filha ficou muito sensível e chorava por qualquer motivo”.

Para a professora de matemática o que foi mais gratificante nesse tempo de caos foi a união: “Nos unimos mais, nos conhecemos mais e a gente sabe que nos amamos muito e somos capazes de passar por muita coisa juntos. A gente foi se descobrindo, foi se conhecendo. Intensificamos o nosso olhar individual para cada um. Retomamos jogos de família e passamos a fazer festas só para gente”.

Valorizar as pequenas coisas e o estar juntos também foi uma lição para Erica. “A gente se reconectou com pessoas que realmente importam. Passamos a usar a tecnologia para o que realmente importa. A gente se desconectou do celular em alguns momentos para se conectar um com o outro”, destaca.

A fé que faz a união


Tássia Martins Santos Rocha e família


Tássia Martins Santos Rocha é contadora e mãe do Miguel de 4 anos. Dentro da sua realidade o impacto maior da pandemia foi ter que readaptar os horários e as rotinas com as aulas online do Miguel, pois ela e o esposo já trabalhavam em home office antes da pandemia.

O caminho que a família encontrou para não prejudicar o desenvolvimento do Miguel foi tentar manter um cronograma de tarefas em casa para dar o suporte necessário para a criança. “Eu passei a trabalhar meio período. Não tivemos muito tempo para pensar, pois tudo aconteceu de uma vez e tivemos que nos adaptar, organizando um cronograma diário para conseguir dar conta de tantas atividades”, conta Tássia.


Miguel, filho de Tássia Martins Santos Rocha

Para Tássia o desenvolvimento da aprendizagem do Miguel não foi prejudicado, mesmo com a realidade das aulas remoto. Tássia relata que o Miguel é um pouco agitado e foi difícil entender o que estava acontecendo. “Teve uma fase da pandemia que ele ficou agressivo, reclamava de tudo e jogava os brinquedos no chão. Ele se mostrou completamente estressado e foi muito difícil lidar com esta situação”, recorda.

A fé também foi algo primordial nesse tempo, pois ela acredita que estar em sintonia com Deus tem ajudado muito eles a enfrentarem os desafios desse tempo.

A pandemia ainda existe e o que fica em nosso coração é a esperança de que tudo isso vai passar, mas enquanto isso tente promover a saúde mental das nossas crianças. “Nesse momento, dependendo do nível de estresse, ansiedade, alteração de humor que a criança já se encontra, a procura de uma avaliação psíquica com intervenção psicológica pode dar um bom suporte para amenizar esses impactos. Procure também manter a rotina, um momento de lazer. Evite falar de problemas econômicos perto das crianças e qualquer assunto que possa tornar o emocional dela ainda mais abalado. Escute o seu filho, aconselhe, apoie, valide a dor da sua criança. Esse acolhimento é importantíssimo”, indica a psiquiatra Fabrícia.




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