Padre Antônio Bogaz e Professor João Hansen
Autores de “Homilia, a teologia do Papa Francisco” (Paulinas, 2020)
A Encíclica não trata apenas da vida do casal, mas da vida da família, segundo o propósito do Concílio Vaticano II que leva a Igreja a dialogar com a sociedade contemporânea. Em primeiro lugar, o Papa apresenta o tema “matrimônio e família” como um princípio vital da tradição cristã e católica, que tem sido abordado pelo Magistério da Igreja desde o século XIX, quando o Papa Pio IX percebeu a banalização da estrutura familiar, na sociedade vitoriana que subjugava o amor conjugal e familiar às intenções do prazer hedonista e dos conluios sociais e políticos.
O tema é retomado na Familiaris Consortio, de 1981, que trata a relação esponsal como um bem maior, para a formação de uma sociedade solidária e saudável. A grande novidade do texto do Papa Francisco é sua sensibilidade ao lançar um olhar de compaixão para além dos muros padrões do modelo ideal de família. Reconhecendo e sacralizando o modelo tradicional da família, procura apreciar, sem condenações ou desprezo, as diferentes realidades pontuais, ainda que muito frequentes, das relações humanas.
Seu olhar é antes de tudo de compreensão e misericórdia. Seguindo o movimento teológico e espiritual da Dignitatis Humanae, documento do Concílio Vaticano II sobre o matrimônio que reflete sobre o princípio da autoridade, o texto do Papa Francisco toca numa das “pedras angulares da comunhão humana e divina” que é a aliança de Deus com Seu povo, concretizada na aliança dos laços familiares.
Superando a dicotomia advinda do valor absoluto da “objetividade da lei” e da aproximação meramente pedagógica da própria lei, que é seu subjetivismo personalista, o Sumo Pontífice entrelaça a correlação no campo moral e no reconhecimento de direitos (pessoais e comunitários) da concepção objetiva e subjetiva das normas matrimoniais. Integrando a relação Igreja-mundo, a Encíclica abrange a dimensão familiar da Aliança divino-humana, elevando seu valor e compreendendo suas limitações, naquilo que concerne à resposta humana.
Lamentavelmente, muitos adversários das proposições pontifícias, que em geral vivem no ostracismo da realidade e não participam das realidades pastorais concretas, preconizando uma “igreja dos perfeitos” (apenas nas normas formais convenientes), não têm sensibilidade para perceber a evolução disciplinar das relações matrimoniais que tocam não apenas o plano pastoral, mas também moral e jurídico. Para tanto, é preciso superar o “maximalismo moral” de uma tradição que prefere o sofrimento humano do que a busca de alternativas para situações concretas.
Quando o Papa admite o diálogo e as novas posturas eclesiais para casos concretos das relações no matrimônio e das tendências da sexualidade, ele eleva o princípio da “humanização” e a noção que não devemos acrescentar dor à dor, pois um casal que enfrentou uma separação não precisa ainda mais de condenação por parte dos seus pastores.
Nestes casos, preocupa-se o Sumo Pontífice, não devemos incorrer no outro extremo que é o “niilismo canônico”. A essência dos sacramentos continua indelével; trata-se, no entanto, de buscar caminhos de reabilitação da dignidade cristã para os que incorreram em situações insuperáveis dentro de seu matrimônio.
As entrelinhas do documento revelam a grande sensibilidade do Papa Francisco, para quem as questões da família e do matrimônio, bem como das tendências da sexualidade, urgem uma reflexão que transcenda as normativas jurídicas e regras morais. A pessoa humana está no coração dos direitos e dos deveres e não pode ser minimizada. É preciso coragem e somente uma alma profética como o Papa Francisco pode determinar um repensamento da eclesiologia e da sacramentária, particularmente a matrimonial, para resgatar o ser humano concreto e não um ser imaginário.
Este diálogo pode ser feito somente na vivência concreta dos pastores (bispos, padres, orientadores espirituais) com os sujeitos concretos em questão e não em instâncias distantes do “cheiro das ovelhas”.
Fonte: O Mílite
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