Surpreende nas bem-aventuranças evangélicas o paradoxo que as caracterizam. Elas proclamam bem-aventuradas, isto é, felizes, ditosas, pessoas em situações humanamente deploráveis que, a partir da perspectiva meramente terrena, seriam consideradas amaldiçoadas. Não rejeitamos as Bem-aventuranças do Evangelho porque sabemos que é Palavra de Deus. Contudo, não deixamos de estranhar que pessoas em situações tão desfavoráveis sejam declaradas bem-aventuradas. Não é mesmo?
No evangelho de Lucas, a cada bem-aventurança corresponde uma “ameaça”, os chamados “ais”: “Bem-aventurados vós, os pobres... Ai de vós os ricos... Bem-aventurados vós, que agora tendes fome... Ai de vós, que agora estais saciados...” As bem-aventuranças começam com o tema da pobreza e prosseguem com outros temas que exprimem carência e insuficiência. Os “ais” começam com o tema da riqueza passando para outros que, igualmente, indicam abundância, suficiência, saciedade.
Mas por que isso? Será uma maldição ser rico? Deus não criou os bens deste mundo para serem usados? Há muita diferença entre possuir os bens deste mundo e ser possuído por eles. É isso que a liturgia da Palavra nos ensina hoje. Os que possuem bens deveriam ser como se não os possuíssem (1Cor 7,30-31). Com efeito, nenhum bem material é definitivo. A história da humanidade o comprova.
A um império colossal, sucedeu outro e nenhum manteve seu domínio definitivamente. Pessoas ricas e poderosas também morrem, e nem sempre os herdeiros conservam e fazem prosperar o que receberam. Em base a essa experiência da vida, a espiritualidade bíblica expõe a precariedade da confiança na posse de bens. Diz o Salmo 48 (ou 49): “Ninguém se livra da morte por dinheiro... Não te inquietes quando uma pessoa fica rica. Ao morrer, não levará nada consigo...”
Portanto, as declarações de Jesus contra os que vivem na abundância não são mero juízo moral. Elas visam mostrar o caráter efêmero das riquezas terrenas e quão ilusória é a confiança que nelas se deposita. O mesmo evangelho de São Lucas traz aquela passagem da pessoa muito confiante nos bens que possuía e que diz a si mesma: “Alma minha, tens uma quantidade de bens em reserva para muitos anos; repousa, come, bebe e regala-te”. A essa pessoa é dito: “Insensato! Ainda nesta noite tua vida será tirada. E para quem ficará o que acumulaste?” (Lc 12,19).
Essas passagens bíblicas, portanto, afirmam com clareza que depositar a própria segurança na posse de bens leva o ser humano à cegueira espiritual. Diz o Livro do Apocalipse que quem diz: “sou rico, enriqueci-me e de nada mais preciso, ignora ser ele o infeliz: miserável, cego, pobre e nu! (cf. Ap 3,17). A verdadeira segurança não está nos bens que se possuem, mas na pobreza evangélica proclamada nas bem-aventuranças. Ela existe em quem reconhece a própria indigência, impotência e miséria e, com humildade, grita a Deus como o salmista: “Quanto a mim, sou pobre e indigente: ó Deus, vem depressa! Tu és meu auxílio e salvação: Senhor, não demores! (Sl 70,6).
A pobreza evangélica, porém, não se identifica simplesmente com a pobreza material, pois mesmo quem fosse possuidor de bens poderia reconhecer que a riqueza material não é tudo para ele, e viver como quem, de fato, depende de Deus. Ao contrário, uma pessoa materialmente pobre poderia colocar toda a sua segurança e esperança na aquisição de bens que ainda não possui.
Para o cristão, o único bem verdadeiro e segurança que não decepciona é seguir a Jesus Cristo que, de rico, se fez pobre para nos enriquecer com a sua pobreza (2Cor 8,9). É só pela participação na sua pobreza que nos tornamos herdeiros da sua riqueza, os bem-aventurados a quem pertencem o Reino dos Céus.
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