Lendo o Evangelho

Parábola do Filho Pródigo: uma parábola sobre nós mesmos

Neste quarto domingo da quaresma, vamos meditar sobre a parábola do Filho Pródigo, que nos ensina sobre o amor misericordioso de Deus para com nós

Frei Aloísio, Ministro Provincial

Escrito por Frei Aloísio Oliveira

27 MAR 2022 - 00H00

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Toda nossa vida está contida nessa parábola. Ela fala do amor misericordioso com que Deus-Pai ama a cada um de nós como filho e filha. Se nos inserirmos a nós mesmos nessa história, sob a luz do amor divino nela contido, tornar-se-á evidente para nós que “sair de casa e ir a um país distante” faz mais parte de nosso itinerário espiritual do que podemos supor.

Como o filho pródigo, somos surdos à voz do Amor e, na desobediência, distanciamo-nos de “casa”. Obviamente, “casa”, aqui, é mais que habitação. É o centro de nosso ser, é a nossa vida, único “lugar” onde podemos ouvir a voz de Deus-Pai e experimentar o seu amor por nós. A questão é que frequentemente não escutamos a sua voz e isso arruína a nossa vida.

De fato, não é fácil ouvir a voz divina em meio ao tumulto de vozes que nos atraem com falsas promessas. Jesus também teve de se confrontar com essas vozes sedutoras. Logo depois do batismo, quando ouviu do Pai que Ele era o Filho amado, foi conduzido ao deserto e, ali, foi tentado pelo diabo a usar o poder divino em seu próprio benefício: “Se és filho de Deus, ordene que esta pedra se torne pão” (Lc 4,3). Jesus, porém, rebate a tentação do inimigo, relembrando a primazia de Deus: “não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”.

Com efeito, quando não reconhecemos mais a centralidade de Deus em nossa vida, colocamos tudo a perder e começamos a andar à deriva. Não foi isso que aconteceu com o filho pródigo? Quando decide pedir a parte da herança para ir embora e gozar a vida ao seu modo, não é porque em seu coração já tinha se distanciado do pai e perdido o sentido da comunhão com ele? Sem relação com o pai, já não se reconhecia mais como filho. Ele se dá conta de quão perdido estava, quando se vê sem vínculo de familiaridade. Longe de casa, ele é um forasteiro que desperta interesse nas pessoas enquanto podem usá-lo em benefício próprio. Mas quando ele não possuía mais dinheiro para dar festas e distribuir presentes, deixou de existir para elas.

No fundo do poço, o filho pródigo redescobre o essencial: sua identidade filial. Junto do pai, ele não vale pelo que tem ou faz, mas pelo que é: filho. É esta consciência de filiação que lhe tornou possível a volta para casa. As palavras: “Pai... não sou mais digno de ser chamado teu filho”, de um lado, é confissão da perda da dignidade de filho, de outro, é expressão da consciência de “ser o filho” que tinha uma dignidade a perder.

Mas a decisão de deixar a situação em que se encontrava é apenas o começo. O retorno do filho pródigo é árduo e cheio de ambiguidades. Ele está caminhando na direção certa, admite que chegou a um ponto insustentável e que é preciso mudar de vida, mas ainda está longe de confiar no amor do pai. Ele tem consciência de ser ainda filho, mas insiste em dizer a si mesmo que perdeu a dignidade de filho e se contenta em aceitar a condição de empregado, desde que isso lhe permita um mínimo de sobrevivência. Demonstra-se arrependido, mas não é um arrependimento à luz do amor misericordioso do pai. Ainda é um paliativo para lhe garantir tempo de sobrevida.

Isso é o que, em geral, acontece conosco. Temos muita dificuldade de experimentar realmente o perdão misericordioso de Deus. Muitas vezes, é como se disséssemos a nós mesmos: “reconheço que sozinho não consigo dar jeito na minha vida e tenho de me entregar a Deus como a última possibilidade que me resta. Vou pedir perdão a Deus, aceitando o castigo que me impuser, com tanto que eu possa sobreviver mesmo a duras penas”. Isso não é ainda experiência do perdão verdadeiro capaz de nos regenerar. É submissão a uma imagem desfigurada de Deus que, em vez de gerar em nós autêntica liberdade interior, nos enche de amargura e ressentimento.

Por incrível que pareça, um dos maiores desafios da vida espiritual é receber o perdão de Deus. Existe em nós uma tendência a nos mantermos agarrados aos nossos pecados, que nos impede de deixar que Deus apague nossos erros passados e nos possibilite um inteiro recomeço.

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Algumas vezes, parece mesmo que queremos provar para Deus que nossas trevas são densas demais para serem vencidas. Pois, enquanto Deus nos quer restabelecer na nossa total dignidade de filhos e filhas, nós continuamos a nos contentar com a condição de empregados. Portanto, a grande questão é: queremos ser realmente perdoados de modo que uma maneira de viver completamente nova seja possível? Estamos dispostos a romper todos os grilhões e nos entregar de forma tão absoluta a Deus que uma nova pessoa possa emergir em nós?

Se a parábola terminasse com o retorno do filho pródigo, seria um desfecho luminoso. Um jovem folgazão, sensual, que quer curtir a vida do seu jeito e, depois de amarga desilusão, decide mudar completamente. Seria um caso típico daquelas conversões extraordinárias, cujos testemunhos gostamos de ouvir. A entrada em cena do irmão mais velho, porém, impede qualquer sentimentalização da parábola. Sua raiva contra o pai porque foi bom, contra o irmão porque foi mal ensombrece o esperado final feliz da história.

Obviamente, o filho mais velho também está perdido, mas seu extravio é mais difícil de identificar. Afinal, ele fazia tudo corretamente. Era obediente, cumpridor das regras e aplicado ao trabalho, respeitado e admirado por sua conduta irrepreensível. Mas quando confrontado com a alegria de seu pai pelo retorno do seu irmão mais novo, uma força sombria emerge de sua interioridade. Vem à tona uma pessoa ressentida, egoísta, cruel e sem compaixão. Sua presunção de ser melhor que seu irmão o leva a recriminar o gesto misericordioso do pai como uma injustiça contra ele: “eu nunca desobedeci a uma só ordem tua e nunca me deste um cabrito para eu festejar, mas quando volta este teu filho que esbanjou tudo numa vida torta, lhe dás uma festa de arromba”.

Impressionante é a figura do pai. Ele é pura “ânsia amorosa”. Ele antecipa os pedidos de perdão que o filho mais novo planejava apresentar, e não só o recebe alegremente em casa, sem fazer perguntas, mas nem mesmo pode conter a ânsia de lhe dar nova vida em abundância. Recuperar o filho é alegria tão grande que nada parece ser suficiente. O melhor lhe deve ser dado. Enquanto o filho está preparado para ser tratado como empregado, o pai manda trazer a túnica de honra. Embora o filho não se sinta digno de ser considerado filho, o pai ordena que lhe ponham anel no dedo e sandálias nos pés para honrá-lo como seu filho amado e restabelecê-lo como legítimo herdeiro.

Em relação ao filho mais velho, o pai é igualmente amoroso. Ele sai ao encontro dele e, com paciência, lhe explica que a misericórdia não pode esperar para se manifestar. Com o retorno do filho mais novo, o banquete da reconciliação necessariamente tinha de começar. O pai explica ainda ao filho mais velho que ele, de forma alguma, está excluído. Ao contrário, devia mesmo participar da alegria do reencontro do irmão.

O que será que vai acontecer? Será que o filho mais velho vai acolher o convite do pai? Vai entrar na festa do perdão e abraçar o irmão como o pai fez? Ou vai continuar do lado de fora, amargurado e ressentido, reivindicando direitos que presume ter? A parábola não responde a estas perguntas, mas seu final deixa aberta a possibilidade de ele perceber que também é pecador necessitado de perdão e conversão.

Ao pai não basta ter somente o filho mais novo de volta em casa. Ele deseja igualmente o retorno do filho mais velho. Não classifica seus filhos em um bom e outro mau. Ele ama a ambos e sai ao encontro deles, cada qual na sua situação particular. Ele quer que todos os dois participem do banquete da misericórdia que ele preparou.

Ao meditarmos esta parábola, vamos nos dar conta de que temos um pouco de filho pródigo e de filho mais velho. Às vezes, somos irresponsáveis e inconsequentes nas nossas atitudes e gostaríamos de ser compreendidos e perdoados, outras vezes presumimos ser melhores que os outros e os julgamos sem piedade. Mas, seja qual for a nossa situação, temos de nos recordar de que somos chamados a nos tornarmos como o Pai. Talvez, a declaração mais radical que Jesus tenha feito, em todo o seu anúncio, seja esta: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). Dizer que Deus é misericordioso conosco não significa simplesmente que ele seja bonachão, fechando os olhos aos nossos pecados, porque, afinal de contas, sabe que somos maus e incapazes do bem. Isso seria uma acomodação que falseia a mensagem do evangelho.

A misericórdia com que Deus nos trata sempre é, antes de tudo, manifestação do seu próprio ser e constitui um apelo insistente para assumirmos a nossa vocação suprema de sermos misericordiosos como ele é. Isso fica muito claro a partir do contexto em que a Parábola é contada.

Escribas e fariseus questionavam a autoridade espiritual de Jesus, porque ele acolhia benignamente os pecadores (Lc 15,1-3). Jesus afirma que o Deus por ele anunciado é um Deus misericordioso, sempre dedicado a buscar e salvar quem quer que esteja perdido (Lc 19,10). Portanto, acolher os pecadores não só não contradiz o ensinamento sobre Deus, como o realiza em termos concretos. E se Deus perdoa e acolhe os pecadores, as pessoas que nele acreditam têm de autenticar a própria fé, agindo do mesmo modo. Dessa forma, “tornar-se como Pai” não é apenas um aspecto do ensinamento de Jesus, mas o núcleo mesmo de sua mensagem.

Fonte: O Mílite

Escrito por
Frei Aloísio, Ministro Provincial
Frei Aloísio Oliveira

É Ministro Provincial da Província São Francisco de Assis dos Frades Menores Conventuais e especialista em Sagrada Escritura.

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