Reportagem

A solidariedade cristã

Diante de um cenário de insegurança alimentar, a caridade é um sinal de Deus para quem mais sofre

Escrito por Ana Cristina Ribeiro e Núria Coelho

08 JUN 2022 - 00H00

O mundo passa por grandes transformações. Há doenças, guerras e catástrofes naturais que constituem um desafio para todos. Na esteira desses desafios tem algo que realmente não pode esperar: a fome.

Milhares de pessoas não tem acesso a alimentos devido questões econômicas, climáticas, logísticas e um sistema de produção que, por mais evoluído que seja, não é capaz de fazer chegar a comida no prato dos mais pobres. Segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), no contexto da pandemia, a fome rondou 55,2% dos lares brasileiros.

A Constituição Pastoral Gaudium et spess, de 1965, fala sobre a Igreja no mundo atual e destaca que: “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”.

De fato, desde as experiências dos Atos dos Apóstolos, passando pelos cristãos perseguidos dos primeiros séculos, até as iniciativas da Idade Média e do nosso tempo, a caridade é um verdadeiro distintivo do cristão. Não se trata somente de caridade no sentido de fazer uma boa ação, mas no sentido profundo de amar as pessoas e não ser indiferente ao sofrimento.

“Os povos da fome dirigem-se hoje, de modo dramático, aos povos da opulência”, foi o alerta que o Papa São Paulo VI fez na Carta Encíclica Populorum progressio, em 1967. “A Igreja estremece perante este grito de angústia e convida a cada um a responder com amor ao apelo do seu irmão”, prossegue o pontífice no texto mostrando que é fundamental a ação solidária da Igreja.

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Respostas

Frei Luiz Favaron, Franciscano Menor Conventual, animava um grupo de reflexão da Bíblia antes da pandemia. Com a urgência dos tempos difíceis, o grupo se organizou para ajudar as pessoas que mais precisavam e surgiu a Casa dos Pobres, na periferia de São Paulo. “O pior da pandemia passou, mas tem ainda as consequências como o desemprego”, afirma o religioso que coordena a iniciativa que distribui mais de 600 refeições diariamente. “Não vem aqui somente quem mora na rua, mas também quem tem casa, contudo não tem emprego e, por conseguinte, não tem comida. Tem pessoas que levam para a Casa dos Pobres um saquinho de arroz ou feijão e comem lá, porque não tem condições de comprar o gás para casa”, relata.

Sediada em uma comunidade da Paróquia São Sebastião, no bairro Fazenda da Juta, a Casa dos Pobres busca prover mais do que as refeições. “Nosso objetivo não é só dar comida. A alimentação é a necessidade mais premente, mas queremos que seja um ambiente de formação e conscientização. Nosso objetivo não é assistencial, queremos ajudar as pessoas a superar esses momentos difíceis também pela educação, pela formação e por atividades que favoreçam as pessoas um emprego”.

Neste sentido, Kelli Cristine de Oliveira Mafort, pedagoga, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), em entrevista à Agência Signis, lembrou que diante do atual cenário social: “As saídas não são individuais, mas coletivas, perante as mazelas que adoecem o corpo, que nos privam o acesso ao alimento e água, mas também as mazelas ligadas ao adoecimento espiritual, que está intimamente ligado ao adoecimento mental. É importante que a gente cuide disso, não só de forma individual, mas que busque produzir relações sociais que nos fortaleçam e que nos deixem cada vez mais saudáveis”.

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Estrutura

Um ciclo de pesquisas realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV Social) mostrou que em 2019 11% dos brasileiros viviam em situação de pobreza, ou seja, com menos de R$ 260,00 por mês. Em 2020, com o auxílio emergencial as pessoas em pobreza extrema somavam quase 5% dos brasileiros. Contudo, no final de 2021, a pobreza aumentou mais do que antes da pandemia, chegando a 13%.

Para Frei Luiz Favaron, “o Brasil vive em uma situação triste. A falta de um prato de comida é consequência de uma estrutura injusta que se inspira no lucro e favorece aos mais ricos. Os pobres ficaram mais pobres ainda. Se fala muito em ‘manter as contas em dia’, nem sempre isso sinaliza um ajuste fiscal, mas a busca por formas de manter o lucro”.

O momento pelo qual o Brasil passa é grave. Também outros países, vizinhos ou em outros continentes, passam por situações semelhantes. O Brasil tem o compromisso constitucional de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, contudo, o atual contexto tem acentuado esses desafios.

Para Kelli Mafort “a situação da fome no Brasil é muito grave e é uma expressão da desigualdade social. Nós temos no Brasil uma população economicamente ativa, composta de 100 milhões de pessoas, 73 milhões estão desempregadas, trabalham por conta própria, ou estão em empregos extremamente precarizados, vítimas da reforma trabalhista”.

Alimento

“O Brasil tem comida para dar para o mundo inteiro, e tem gente passando fome aqui?”, questiona Frei Luiz. De fato, segundo o IBGE, a safra 2022 deve bater novo recorde. Espera-se que sejam colhidas mais de 271,9 milhões de toneladas de grãos, 7,4% acima da obtida em 2021. As principais culturas são de arroz, milho e soja. O Censo Agropecuário do IBGE indica que da agricultura familiar, ou seja, dos pequenos proprietários que contam coma força de trabalho principalmente da família, são responsáveis por praticamente metade da produção dos alimentos que estão na mesa do brasileiro. 42% do feijão, 48% do café e 80% da mandioca, por exemplo.

Para Kelli Mafort, a agricultura familiar “é um grande leque que abarca tanto os pequenos agricultores, assentados de reforma agrária, pessoas que vivem no campo e que produzem comida. O agronegócio não produz comida, produz quatro, cinco produtos que são commodities para exportação”.

Indígenas

Segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, na região Norte do Brasil, mais de 18% da população não tem acesso estável a alimentos. A Amazônia, que muitas vezes imaginamos como um paraíso de abundância de frutos e animais, é um ambiente fortemente atingido pela exploração. Indígenas estão em constante mobilização em defesa de seus territórios.

O Papa São João Paulo II, em 1997, fez um grave alerta: “O aspecto de conquista e de exploração dos recursos tornou-se predominante e invasivo, e hoje chega a ameaçar a própria capacidade acolhedora do ambiente: o ambiente como ‘recurso’ corre o perigo de ameaçar o ambiente como ‘casa’”.

Temos aqui um exemplo de como há uma estrutura injusta que mata e priva de alimentação os mais frágeis. O sociólogo Wellthon Leal, aos microfones da Rádio Imaculada, apresentou três situações alarmantes, sobretudo em relação aos indígenas. Primeiramente, explica o sociólogo, “para que os povos originários tenham sua agricultura de maneira correta e o acesso à terra. Muitos povos têm acesso limitado às suas próprias terras devido a invasão de garimpeiros. É difícil plantar e ser expulso do seu próprio lugar”.

Wellthon destaca que os desafios para a alimentação não são exclusivos da Amazônia e nem dos povos indígenas: “Os Ianomâmis tem um grave problema que ocorre também entre outras tribos e nas populações ribeirinhas. A alimentação, muitas vezes, vem contaminada com mercúrio usado no garimpo. Um dos principais sintomas da intoxicação por mercúrio é uma grave desinteria. Os peixes contaminados com mercúrio também causam desidratação por diarreia. Existe a possibilidade de plantar e pescar, mas a comida está envenenada”.

A terceira situação é sobre a autonomia dos povos originários na produção do próprio alimento. Carecem as chamadas sementes crioulas que são variedade cultivadas por séculos. O milho, por exemplo, é comercializado com as cores amarela e branca, mas existe milho preto, vermelho e de outras cores e tipos. “Em alguns territórios, estão sendo plantadas sementes doadas por empresas, mas que são geneticamente modificadas e não geram novas sementes. A comunidade planta, mas da colheita não consegue tirar as sementes para uma nova plantação. Isso cria dependência da comunidade com o fornecedor das sementes. As comunidades precisam ser autônomas em alimentação”.

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Solidariedade

“Quem tem fome tem pressa”. A frase de Herbert de Souza, conhecido como Betinho e articulador da Ação de cidadania contra a fome na década de 1990, mostra a dureza de uma realidade que não pode ser adiada. “A sociedade quer se mobilizar para praticar a solidariedade e salvar o maior número de pessoas da fome, isso é uma ação urgente. Nós temos que cobrar do governo, do estado, as suas responsabilidades frente a ausência de políticas públicas. Fazer a denúncia sobre o que isso representa: a falta de políticas e programas sociais para atender pessoas, denunciar a questão da economia no país”, afirma Kelli Mafort.

Frei Luiz Favaron explica que o que se faz pelos outros nunca é pouco a ponto de ser irrelevante, e nunca a demais a ponto de não precisar de continuidade. “Sempre digo aos voluntários e apoiadores da Casa dos Pobres que em Mateus 25 Jesus diz que esteve com fome. Cada um que faz parte dessa iniciativa está alimentando a Jesus”, salienta o religioso que pode ser encontrado sempre na Casa dos pobres, na Fazenda da Juta, em São Paulo - SP, e no perfil do Instagran luizfavaron.oficial.

O Papa Francisco estimula a todos para atitudes generosas e consistentes em nosso dias, e, sobretudo, nos dias duros que passam as pessoas mais frágeis, com estas palavras da Carta Encíclica Fratelli tutti: “Solidariedade é uma palavra que nem sempre agrada; diria que algumas vezes a transformamos num palavrão, que não se pode dizer; mas é uma palavra que expressa muito mais do que alguns gestos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação.

Fonte: O Mílite

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