O trecho do Evangelho acima se divide em duas partes. A primeira (vv. 5-6) trata de um pedido dos apóstolos a Jesus para que lhes aumente a fé. Isso é possível, sobretudo quando nos damos conta de que, para São Lucas, fé não é simplesmente admitir a existência de Deus e das “coisas sobrenaturais”, mas é seguimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, mediante a escuta da Palavra do Evangelho anunciada por Cristo e os apóstolos.
Essa experiência começa sempre muito pequena, mas pode crescer sempre de intensidade, a ponto de remover o egoísmo, a intolerância, o ódio e todas as maldades que, tantas vezes, como sicômoros, lançam raízes profundas em nós separando-nos de Deus e dos irmãos e irmãs.
Se constatarmos que nossa fé como seguimento de Nosso Senhor é demasiado pequena, menor que um grão de mostarda, isso não é motivo para nos desanimar e desistir desse compromisso tão decisivo para nossa vida. Pois, com aquela palavra: “Se tivésseis fé do tamanho de um grão de mostarda…”, Jesus quis dizer que até os apóstolos começaram como principiantes e, naquele momento, ainda não tinham suficiente profundidade no seguimento de Cristo.
Só, depois, ao longo da vida, foram crescendo e amadurecendo nesta experiência. Mas, de uma coisa podemos estar certos: a fé como experiência amadurecida de seguir Jesus Cristo arranca todos os males de nossa vida.
Na segunda parte deste trecho (vv. 7-10), há uma parábola que, à primeira vista, nos parece um tanto antipática. Trata-se de um patrão que quando, seu empregado, volta para casa depois de um dia de duro trabalho na lavoura, em vez de lhe ser gentil dizendo: “Senta-te, descansa um pouco, toma um lanche e bebe alguma coisa”, lhe diz: “Anda logo, prepara-me o jantar. Depois que eu comer e beber, tu poderás te servir”. E a parábola continua enfatizando a rudeza do patrão: “Por acaso, o patrão tem alguma obrigação de ser agradecido ao empregado por ter cumprido com o dever dele?”
É lógico que a parábola não pretende ensinar normas de conduta entre patrões e empregados. Todo patrão cristão, como consequência óbvia de sua fé, deve ter relacionamentos humanizados com seus empregados. O que a parábola pretende ensinar é a lógica evangélica da gratuidade, oposta à lógica da retribuição pelo mérito pessoal. Por isso, o conteúdo só faz sentido se analisado a partir da última frase: “Assim também vós, quando tiverdes cumprido tudo o que vos foi ordenado, dizei: ‘Somos servos inúteis, fizemos apenas o que devíamos fazer’” (Lc 17,10). Leia MaisFrancisco, o protetor dos animaisTransformar pela força da féDom Luís Flávio Cappio, uma vida em defesa do “Velho Chico”Como cultivar a fé?
A consciência religiosa comum, nos tempos de Jesus – talvez hoje não seja muito diferente –, era muito dominada pela mentalidade do mérito pessoal. Nos Salmos e em outras partes das Sagradas Escrituras, há amplos reflexos dessa mentalidade. Pensava-se que uma pessoa boa e justa que pratica sempre boas obras acumula recompensas diante de Deus e que, portanto, tais obras colocariam Deus na condição de “devedor” obrigado a fazer a justa retribuição a quem as praticou.
Nesse sentido, a salvação era entendida como resultado direto das obras boas de cada um. O Evangelho anunciado por Jesus rompe com essa mentalidade. Ele afirma que tudo é dom de Deus. A salvação só é possível porque Ele tomou a iniciativa de nos salvar. As boas obras que praticamos não acumulam méritos diante de Deus, porque todo bem Lhe pertence. O próprio praticar uma boa obra é dom recebido de Deus. Assim, quando agimos bem, estamos simplesmente devolvendo a Deus o que já era d’Ele.
São Francisco de Assis entendeu profundamente esta lógica do evangelho, pois afirmava que se sabe que uma pessoa se tornou verdadeiramente um discípulo amadurecido quando o Senhor realiza algum bem por meio dela e ela não se exalta por esse motivo, nem se considera merecedora de alguma recompensa. Mas, ao contrário, considera-se pessoa comum e, inclusive, se estima menor que as demais.
Mas, se tudo é dom de Deus, inclusive a capacidade de realizar algum bem, qual é, então, o nosso papel? Qual é nossa responsabilidade? O que nos cabe fazer? Receber o dom que nos foi dado! Alguém poderia objetar: “Mas, é só isso? Não é muito pouco?” Não é pouco! É tudo! Acolher o Evangelho de Jesus Cristo na própria vida e se deixar transformar inteiramente por ele é tudo que o cristão precisa fazer. O resto virá por acréscimo (cf. Mt 6,33). Contudo, não nos iludamos! Isto não é fácil. O Evangelho é de graça, mas não é barato! Ao contrário, custa muito caro! É um bom combate a ser travado a vida inteira, até sermos completamente despojados do homem velho e revestidos de Cristo (cf. 1Tm 6,11-14).
Frei Egídio de Assis, um dos primeiros companheiros de São Francisco, entendeu bem esta dificuldade de recepção da graça que nos foi dada. Conta-se que um dia, um conhecido o cumprimentou e lhe perguntou: “Que fazes, frei Egídio?” E ele respondeu: “Faço o mal”. A pessoa não compreendeu e retrucou: “Como assim? Não entendo. Todo mundo sabe que és um homem santo, que vive rezando e meditando”. Então Frei Egídio respondeu: “Meu filho, o que pensas disso: quem é mais pronto, Deus em dar sua graça ou nós em recebê-la?” E o homem respondeu: “Certamente, é Deus em dar a sua graça!” E frei Egídio concluiu: “Então, pensas que faço o bem?”
Fonte: O Mílite
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