Reportagem

Fraternidade e Fome

“Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 16,14)

Ana Cristina

Escrito por Ana Cristina Ribeiro

15 MAR 2023 - 00H00 (Atualizada em 30 MAI 2023 - 09H45)

Por Paulo Teixeira e Ana Cristina Ribeiro.

A Conferência Nacional do Bispos do Brasil (CNBB) promove anualmente a Campanha da Fraternidade, que traz para reflexão temas que são relevantes na sociedade. Em 2023, pela terceira vez, a Igreja Católica do Brasil vai falar sobre a temática da fome. A primeira vez foi em 1975 e a outra em 1985. A Campanha da Fraternidade (CF) é uma das maneiras de viver a espiritualidade do tempo quaresmal. Seu gesto concreto, proposto pela CNBB, é unir forças na construção de uma sociedade que melhor corresponda à mensagem do Evangelho. O país tinha saído do mapa da fome da Organização das Nações Unidas em 2014, por meio de estratégias de segurança alimentar aplicadas desde meados da década de 1990, mas, em 2015, voltou a figurar como um país da fome.

A fome voltou a fazer parte do dia a dia do povo brasileiro. Além das consequências da crise sanitária da Covid-19, instabilidades políticas e sociais enfrentadas pelo Brasil nos últimos anos, somadas a outros fatores como a desigualdade social, também elevaram o país a esse patamar de fome. A Igreja, como parte da sociedade, promove mais uma vez discussões e ações para superar este problema.

Neste ano, o tema da CF tem como lema a inspiração bíblica: “Dai-lhes vós mesmo de comer” (Mt 14,16). É um convite a promover um diálogo sobre a problemática da fome, à luz da fé cristã, além de propor caminhos em direção a um humanismo solidário.

Compromisso

“Minha vida é pautada no compromisso com os mais pobres”, foi com essa fala que Frei Luiz Favaron, Franciscano Menor Conventual e fundador da Casa dos Pobres nos acolheu. A Instituição, fundada durante a pandemia, atende pessoas em situação de rua e famílias em vulnerabilidade social, na Fazenda da Juta, zona leste da capital paulista.  

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Frei Luiz Favaron


Frei Luiz conta um pouco do serviço da Casa dos Pobres: “No ápice da pandemia chegamos a servir mais de mil refeições por dia. Atualmente distribuímos em torno de 400 refeições. Já questionaram por que não dar cestas básicas, e é um outro problema. Essas pessoas não têm dinheiro para comprar gás. Tem pessoas que recebem cestas básicas e trazem para nós cozinharmos para eles, pois não têm gás para preparar o alimento”.

A situação retratada por Frei Luiz é confirmada pelos dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional que realizou um minucioso inquérito que revelou que 33 milhões de pessoas enfrentam a fome no Brasil atualmente.

Em 1993, no auge da crise inflacionária, antes ainda do Plano Real, havia 32 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave. Naquele contexto o Betinho, como era conhecido o mineiro Herbert José de Sousa, fundou a Ação da Cidadania. Tem destaque a inciativa de doações de cestas básicas no Natal e o lema conscientizador “quem tem fome tem pressa”. Para Norton Tavares, da Ação da Cidadania, cestas básicas são importantes, mas “o que, de fato, combate a fome é política pública, portanto, o trabalho fundamental da Ação da Cidadania é cobrar iniciativas governamentais efetivas para atender as famílias mais vulneráveis do país”. José Graziano, por duas vezes diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), aponta a desvalorização do salário mínimo, o desemprego e a precarização do trabalho, e o desmonte das políticas sociais como fatores principais da fome no Brasil.

Olhando para o início dos anos 2000, Graziano aponta duas diferenças para o desafio atual da fome: “A fome no início do século atingia cerca de 40 milhões de brasileiros e era predominantemente rural e concentrada nos pequenos municípios rurais das regiões Norte e Nordeste porque aí residiam os miseráveis”. Hoje, difusa pelo país, a insegurança alimentar atinge 65 milhões de pessoas que não conseguem fazer três refeições em um dia, e para 33 milhões é grave no sentido de a pessoa não ter como comer”. Outro ponto que amplia o desafio atual é que em 2003 a insegurança alimentar leve atingia 13% da população, hoje chega a 35%. “Além dos que não comem, houve um grande crescimento dos que comem mal, ou seja, da insegurança alimentar leve em que as pessoas substituem produtos por outros de menor valor nutricional como, por exemplo, pessoas que deixam de comer carne e comem só farinhas. Isso devido à desvalorização do salário mínimo, que fez com que a renda dos mais pobres caísse em termos reais, obrigando-os a reduzir a qualidade dos produtos consumidos”, aponta José Graziano.

Alimento

Há mais de 40 anos a Pastoral da Criança atua de forma incisiva no combate à desnutrição infantil no Brasil. Presente em todas as dioceses, consegue alcançar todos os municípios com seus programas e informações que visam garantir alimentação adequada para as crianças. Para a coordenadora da Pastoral da Criança, Irmã Veneranda Alencar, “infelizmente esse ‘pós-pandemia’ trouxe para nós o cenário triste da fome, que já existia e ficou mais notório. A fome é uma ferida da sociedade. Infelizmente somos um país rico, mas que desperdiça muitos alimentos”. Um projeto do Sesc Brasil, chamado Mesa Brasil, há quase 30 anos recolhe os alimentos que não estão no padrão de comercialização e seriam encaminhados para o lixo. O projeto resgata o alimento e leva para instituições que assistem pessoas em situação de vulnerabilidade.  

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Irmã Veneranda Alencar


O Mesa Brasil é a ponte que une indústrias e supermercados, entrepostos e produtores, às iniciativas solidárias. Cláudia Roseno, do Sesc Brasil, explica que “juntamente com os alimentos, as instituições também participam de ações educativas que visam o trato do alimento, a higienização, a conservação, o processamento e o preparo diferenciado; tão importante quanto a comida é esse aspecto educacional que visa combater o desperdício”.

Caminhos

Para Frei Luiz, é algo escandaloso o que ocorre no Brasil: “A sociedade brasileira é profundamente injusta porque o Brasil tem comida para dar para o mundo inteiro. É um escândalo ver tanta gente passando fome, catando lixo para se alimentar”. Além de distribuir alimentos, a Ação da Cidadania atua com a cobrança das autoridades por meio de especialistas que acompanham atividades e propostas dos poderes públicos visando ações concretas para combater a fome. “As nossas ações também querem colocar a sociedade como copartícipe desse problema. Se a gente está passando fome no Brasil não é uma questão da natureza, é uma questão de escolha. O Brasil produz alimentos suficientes para alimentar todas as pessoas do país e por escolhas políticas e econômicas esses alimentos não chegam para as pessoas”, destaca Norton.

A fome é um sofrimento humano que deixa diversas sequelas e ameaça a vida das pessoas. É um problema complexo que envolve questões ambientais, econômicas e políticas, e causa inúmeras vítimas. “A insegurança alimentar é cruel porque às vezes a pessoa, que trabalha e tenta ganhar a vida com a produção de alimento, não consegue se alimentar de forma adequada”, destaca Cláudia Roseno. Leia MaisAmar é cuidarVida na esperançaA proximidade de Maria e a Santíssima TrindadeCNBB nos convida a refletir sobre a fome

“A fome no Brasil hoje, felizmente não é um problema de produção como tivemos nos anos 1960. Você vai ao supermercado e as prateleiras estão cheias; o que estão vazios são os carrinhos dos consumidores mais pobres, sem falar daqueles que não são nem permitidos de entrar nos supermercados, os miseráveis. Ou seja, hoje não faltam alimentos, falta dinheiro para comprá-los”, ressalta Graziano.

Superação

“Nós podemos superar a fome do Brasil se conseguirmos passar do nível assistencialista para uma luta libertadora. Quero dizer com isso que o que fazemos agora é um trabalho de ajuda. Damos comida a quem tem fome e nesse sentido o povo brasileiro é incrível. Mas não podemos ficar só nisso. Nós da Casa dos Pobres seremos felizes quando cada um puder ter comida na sua casa. A sociedade só vai mudar se permitirmos uma mudança de consciência”, indica Frei Luiz Favaron. Nesse sentido, José Graziano indica que o desafio agora não é somente possibilitar três refeições, mas “garantir uma dieta saudável acessível a todos os brasileiros, não só aos mais ricos! Essa é a grande diferença do compromisso: combater não apenas a fome, mas também a má nutrição e promover um desenvolvimento sustentável da nossa agricultura”.

A CF propõe um esforço de toda a sociedade para um processo de verdadeira erradicação da fome para que o caminho de superação não tenha retorno. “Olhamos com olhar triste para a situação, mas é preciso arregaçar as mangas, seguir em frente e fazer algo para reduzir e até erradicar a fome. Com políticas públicas de qualidade e com a participação da sociedade”, destaca Irmã Veneranda. Uma iluminação nos vem do ensinamento do Papa João Paulo II: “Não será fácil avançar, porém, neste difícil caminho, no caminho da indispensável transformação das estruturas da vida econômica, deve acontecer uma verdadeira conversão das mentes, das vontades e dos corações” (Redeptoris hominis, 16).

MI NA CF A Rede Imaculada de Comunicação promove durante a Quaresma, o Especial Campanha da Fraternidade 2023 Todas as quarta-feiras de março, dentro do programa Bom dia Amigos, no ar a partir das 10h, teremos bispos, religiosos e especialistas tratando sobre o tema da CF. Ao mesmo tempo, será realizada a campanha Misericórdia em Ação, com arrecadação de alimentos que serão doados a instituições que trabalham no combate à fome. A arrecadação será feita nas sedes da Rádio e TV Imaculada em São Bernardo do Campo - SP, Atibaia - SP, Maceió - AL e Campo Grande - MS.

Fonte: O Mílite

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Ana Cristina
Ana Cristina Ribeiro

Graduada em Jornalismo e licenciada em Letras, atua no Departamento de Redação da MI como jornalista responsável pela revista "O Pequeno Mílite" desde 2016.

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